Quando a fé ocupa o lugar do tratamento — e o tratamento tenta ocupar o lugar da fé.
- Natale Molina

- 24 de jun.
- 3 min de leitura
O que você está procurando?
Você busca acolhimento? Alívio? Um sentido para o sofrimento? Uma explicação para sua frustração?
Muitas vezes, é isso que nos move a procurar ajuda. Mas quando a dor é grande e a urgência é silenciosa, podemos acabar buscando no lugar errado aquilo que realmente precisamos. E isso pode custar tempo, esperança — e até a saúde mental.
O risco de buscar tratamento onde há apenas crença
Psicoterapia não é mágica. Não é promessa. Não é um esquema generalista onde você — e mais milhares de pessoas — são colocadas no mesmo molde, como se alguém, mesmo sem conhecê-lo, pudesse saber o que é melhor para você.E definitivamente não é uma versão sofisticada de "acredite e será curado".
Apesar disso, muitos consultórios, grupos e instituições hoje oferecem práticas que se afastam da ciência, mas são vendidas como tratamento ou solução para “você ser melhor” (seja lá o que eles acreditam que é o melhor para você).
Métodos que prometem “cura rápida”, “libertação emocional” ou até “reconexão energética” — mas que não têm qualquer comprovação de eficácia.
A esperança do paciente, nesse cenário, vira matéria-prima para charlatanismo.A boa-fé é explorada, a dor emocional é a fragilidade mais visada, e o sofrimento segue — apenas mais disfarçado.
Quando se confunde fé com ciência, corre-se o risco de perder tempo precioso com o que não trata — apenas entretém a dor.
Quando a espiritualidade tenta curar o que precisa de tratamento
Há quem ignore sinais claros de depressão, ansiedade, transtornos alimentares ou crises de identidade, atribuindo tudo a “falta de fé”, “distanciamento de Deus” ou “prova espiritual”.
Buscar apoio em comunidades religiosas pode ser um recurso potente — mas não substitui o tratamento psicológico ou psiquiátrico.
Pior ainda quando grupos religiosos, líderes espirituais ou coaches se colocam como guias do que a pessoa “deveria sentir”, “deveria escolher” ou “deveria ser” — sem nem conhecer verdadeiramente sua história.
Nessas situações, o sagrado é usado para calar a dor. Práticas exaustivas criam uma dor, apenas para desviar o foco da dor emocional real — mas nunca para acolhê-la.
Fé e ciência não precisam competir — mas precisam estar no lugar certo
Fé e ciência não são inimigas.Um bom processo terapêutico respeita sua espiritualidade. Muitos estudos mostram que a fé pode ser uma fonte de resiliência e sentido, quando bem integrada ao cuidado clínico.
Mas isso só é possível quando cada esfera ocupa o seu lugar.
Um discurso sedutor sobre propósito, pertencimento, força e honra pode no fundo só reforçar a negação do sofrimento psíquico, a repressão da subjetividade e a ideia perigosa de que "fé resolve tudo”.
A psicologia séria não tenta reprogramar crenças espirituais.E a religião não deveria tentar tratar dores que precisam de abordagem técnica e embasada, ou comportamentos cuja complexidade exige conhecimento aprofundado e análise cuidadosa para, então, promover mudanças reais — respeitando a individualidade de cada pessoa.
O cuidado começa pela clareza
Saber onde buscar ajuda é um gesto de maturidade emocional.
Reconhecer que há limites para o que a fé pode fazer — e também limites para o que a psicoterapia pode tocar — é o primeiro passo para um cuidado verdadeiramente transformador.
Não aceite promessas vazias. Nem permita que sua fé seja usada como desculpa para ignorar o que você sente.
E não coloque nas mãos de outro a responsabilidade de decidir o que é melhor para você.
A psicoterapia baseada em evidências científicas pode te ajudar até a desenvolver o discernimento necessário para aprender a buscar o que você realmente precisa — no lugar certo, com a intensidade adequada e com autonomia.

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